A Metamorfose daria um sitcom muito ruim

Rafael Marcon
4 min readDec 12, 2018

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Publicada originalmente em 1915, A Metamorfose é uma novela canônica da literatura mundial, um texto exemplar da prosa moderna e a obra mais conhecida de seu autor Franz Kafka (Praga, 1883–1924). Conta a história de Gregor Samsa, que é subitamente acometido pela transformação que dá nome à obra, quando acorda metamorfoseado “num inseto monstruoso” ainda no primeiro parágrafo. O leitor é então apresentado à vida do protagonista já sob a luz do principal acontecimento da trama, conhecendo sua profissão de caixeiro-viajante, o ambiente em que mora — “Um autêntico quarto humano, só um pouco pequeno demais” — e a família com quem divide a casa, composta por mãe, pai e a irmã mais nova, Grete, como elementos aos quais Gregor tem de reagir em sua nova condição.

O narrador impessoal conta a história em terceira pessoa mas não se apresenta como onisciente. Pelo contrário, sempre se limita ao que o próprio Gregor é capaz de perceber sensorialmente, deduzir ou se recordar. Dessa maneira, a construção espacial se dá como em um palco de teatro, focado no cenário do quarto do protagonista e com indicações pontuais do que há ao redor, como sons que vem de trás das portas que dão acesso ao dormitório (logo na primeira cena, a menção de que o pai bate em uma porta para chamá-lo enquanto a irmã sussurra por outra, na parede oposta, implica na sensação de que o protagonista está cercado. Ideia recorrente em Kafka) ou recortes das condições climáticas da paisagem externa vislumbrados pela janela. Conforme o tempo vai passando e a situação vai se assentando como incontornável para o núcleo familiar, o quarto reflete e retroalimenta o estado psicológico e corporal do protagonista mutante. Há acúmulo de sujeira e restos de alimentos que Grete lhe oferece; o mau cheiro de seu corpo de inseto torna ainda maior o desconforto de sua irmã quando precisa adentrar o cômodo; e por fim são retirados os móveis, os produtos que ele comercializaria em viagem e os objetos de decoração (como uma foto do próprio Gregor, sorrindo, com imponente uniforme de quando foi militar), de modo a liberar o máximo de espaço para que Gregor possa rastejar pelas paredes e pelo teto, atividade pela qual desenvolve gosto conforme se habitua ao novo estado.

Em contraponto à dramaticidade atroz dos acontecimentos relatados, o tom de voz do narrador é monocórdico, descrevendo com fria objetividade as desventuras por que passam Gregor e sua família. Em diversos momentos, o estilo prático da narrativa ganha contornos de humor sombrio, como quando se atém longamente a descrever o esforço de Gregor para calcular a força que tem que fazer para se atirar da cama e como não tem controle de suas curtas patas de inseto nas primeiras cenas. Em outras situações, a priorização absurda que o personagem faz em sua condição é o que desperta a comicidade. Recém percebido em um corpo de inseto, a primeira preocupação que aflige Gregor Samsa é o medo de perder o trem que precisa tomar para chegar no horário em seu expediente, o que em certa medida não se mostra de todo equivocado, já que seu gerente superior vai prontamente à sua caça, constrangendo a família e partindo apenas quando vê o funcionário transmutado. O simples fato de centrar a história no núcleo familiar e em seu ambiente privado remete a um formato de comédia explorado largamente no teatro e posteriormente na televisão, com os chamados sitcoms, mas ao contrário do que se espera de textos cômicos tradicionais, em A Metamorfose não há qualquer catarse ou alívio decorrente do humor, e o comportamento inacreditável dos personagens perante os acontecimentos do enredo — que em Kafka é frequentemente associado à ideia de pesadelo, precedendo à sua maneira a vanguarda surrealista e o realismo mágico — serve muito mais para expor uma família tão oprimida pela construção social que não tem como cogitar uma saída que não passe pela exploração do trabalho, não tem a quem recorrer e teme a retaliação social que lhe seria imposta caso tornasse pública a situação de Gregor, portanto tenta contornar o assunto com pretensa naturalidade.

Dessa maneira, encarando o problema do personagem central como de caráter essencialmente de inaptidão social em vez de transfiguração biológica, é possível interpretar a metamorfose como uma metáfora para o caso de Gregor apenas ter perdido a lucidez e a capacidade de expressar o que pensa, o que, sendo contado por seu ponto de vista, ainda que indiretamente, tem para o contexto da família o mesmo efeito dele se tornar um monstro que necessita ser ocultado o quanto possível, e na ausência de outra alternativa, morto.
Por essa pluralidade de leituras que cabem na breve história de A Metamorfose, e pela maneira única e não datada que Kafka usa para desenvolver o texto, o livro permanece atemporal, podendo ser revisitado quantas vezes for preciso, conforme o tempo passa e novas criaturas monstruosas são apontadas pela sociedade.

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